sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Trab 07




As novas demandas ao psicanalista, a interface com o jurídico, com a medicina e a inserção da psicanálise na rede pública de saúde.




Por William Silva


Trab. 07










O mundo não é estático, a economia se transforma diuturnamente, as informações se sucedem com uma velocidade impressionante da internet. No mundo da era globalizada, a violência, as misérias, os abusos, desmandos e desamparos ficaram banalizados. A guerra invade as telas da televisão e o som do rádio como se fosse fantasia... Mas o sangue e a morte, a miséria são reais. Será que o ser humano acompanhou estas mudanças no seu habitat? Percebemos o declínio do mundo privado, as revoluções institucionais, as ameaças e crises ecológicas, novas identidades sociais, a engenharia genética, o acesso facilitado às drogas lícitas e ilícitas, a economia globalizada e os desempregados sem função... Inevitável perguntarmos: e o ser humano? Como reagiu e se adequou? A quem tem recorrido para lhe dar suporte no desamparo e insegurança? Para atender a uma sociedade em mutação, o homem tem recorrido a tudo e a todos que lhe dêem forças para se re-inventar o tempo todo.




No início do século XIX, quando Sigmund Freud, começou a construir o corpo científico da Psicanálise, a cultura da época primava por um código de valores e regras claras. A Lei tinha seu lugar, a transgressão quando exposta provocava desagrado e exigência de punição. Nos tempos modernos temos uma nova demanda social. Surgem novas teorias e técnicas terapêuticas, propondo soluções mais rápidas e efetivas para homens, grupos, instituições e comunidades. Paralelo às técnicas curativas, as políticas sociais e econômicas têm por objetivo as quebras de garantias sociais, profissionais e sindicais, aumentando a insegurança, o medo e a fragilidade das pessoas.


Estamos numa sociedade marcada pela exigência de respostas tecno-científicas beirando ao cientificismo que nos leva a ficar preso nas teias do fato comprovado. Que posição ocupa a Psicanálise neste mundo? Qual sua contribuição científica, para intervenções neste contexto social?


Desde os primórdios de sua existência a psicanálise tem percorrido variados caminhos, passando por uma série de releituras que sofrem influências do momento histórico e do contexto social. Muitas questões foram repensadas ou sofreram distintas interpretações desde Freud, na Viena do princípio do século.


No texto Sobre o Início do Tratamento (1913), Freud ressalta que as regras que podem ser estabelecidas para o exercício do tratamento psicanalítico acham-se sujeitas a sérias limitações. Freud compara o estudo exclusivamente teórico da técnica psicanalítica ao aprendizado do jogo de xadrez pelos livros e conclui que não é impossível dar conta da infinita variedade de jogadas em uma descrição teórica. Diz Freud: “Penso estar sendo prudente, contudo, em chamar estas regras de recomendações e não reivindicar qualquer aceitação incondicional para elas. A extraordinária diversidade das constelações psíquicas envolvidas, a plasticidade de todos os processos mentais e a riqueza dos fatores determinantes opõem-se a qualquer mecanização da técnica (...)” (p. 164). Jaques Lacan em seu seminário de 1964, Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise (1988), reforça tal noção.”A psicanálise não é nem uma ‘Weltanschauung’ nem uma filosofia que pretende dar a chave do universo. Ela é comandada por uma visão particular que é historicamente definida pela elaboração da noção de sujeito. Ela coloca esta noção de maneira nova, reconduzindo o sujeito à sua dependência significante” (p. 78).


Hoje a psicanálise passa a ser cada vez mais convocada também no meio público a tentar dar conta das questões que a medicina tradicional não é capaz de responder. Profissionais com variados graus de afinidade com a psicanálise estão, cada vez mais, trabalhando não apenas em seus consultórios particulares, mas também em instituições e serviços da rede pública. Com suas práticas estes profissionais fazem renascer a questão: como é possível a psicanálise passar por todas as alterações impostas pelas circunstâncias específicas da saúde pública sem perder suas características fundadoras, sem deixar de ser psicanálise?


O relacionamento profissional de saúde-paciente é, sabidamente, uma parceria entre duas pessoas, das quais uma delas detém o conhecimento técnico-científico, que põe à disposição da outra, que o aceitará, ou não. Contrariamente o que pensam muitos médicos que percebem esse relacionamento como uma subjugação. É nessas condições, de pleno exercício da autonomia de duas pessoas, que o sucesso do tratamento depende, a menos que uma delas - o "paciente" - renuncie à sua própria autonomia, optando pela sujeição a uma postura mais paternalista do profissional de saúde, o que é freqüente, dada a condição de "regressão" que o mal-estar habitualmente produz no cliente.


Este fenômeno, em psicanálise denominado transferência, pode levar o paciente a conceder ao médico um lugar de poder absoluto, em uma verdadeira substituição da figura onipotente do pai imaginário. Reconhecer-se no lugar transferência pressupõe certa sensibilidade do profissional. Usar tal lugar para o exercício do poder, no entanto, já implica uma ação a ser pensada e discutida no plano da ética.


Há, sem dúvida, na clínica do ambulatório público alterações em diversos aspectos da técnica originalmente elaborada por Freud. O tempo de duração das sessões, a freqüência com que estas ocorrem, a ausência de pagamento dos honorários diretamente àquele que realiza o atendimento, o setting dos atendimentos sem divã nem poltronas, a duração do tratamento como um todo, o fato do pedido de tratamento não ser dirigido a um nome específico, mas sim a uma instituição, que se presentifica durante todo o atendimento como um terceiro que deixa suas marcas transferências, todos estes aspectos, trabalhados por Freud no artigo Sobre o Início do Tratamento (op. Cit.), têm no atendimento público características distintas das recomendadas no artigo de 1913. Tais mudanças exercem evidentemente grande influência na prática clínica, reforçando a idéia de que a psicanálise realmente não possuiria um espaço possível dentro da saúde pública.


No entanto, vale analisar tais questões com maior cuidado. Seriam o número de sessões, ou o tempo que estas têm de duração, ou a ausência de poltronas e divã pontos tão fundamentais, tão inalteráveis da técnica psicanalítica? Ou estas mudanças implicariam sim recriações, sem, contudo impossibilitar a psicanálise de seguir como referência do trabalho? Não estaria aqui também em questão a resistência dos próprios analistas, que colam-se muitas vezes a padrões rigidamente estabelecidos e não permitem-se trabalhar com o novo? Não seria esta justamente uma das funções da psicanálise, a possibilidade de enfrentar o novo, as alterações decorrentes da dinâmica histórico-cultural, que de certo modo são justamente as construções do humano tão valorizados pelo próprio Freud?


Sabe-se que há uma grande demanda nos ambulatórios públicos e que esta, por alguma razão, não chega aos consultórios particulares. Tal demanda certamente se beneficiaria com uma crescente inserção da psicanálise na rede pública. Apesar das particularidades esta inserção parece ser uma via possível de ser trilhada, desde que haja abertura e interesse tanto por parte das políticas de saúde pública como dos próprios psicanalistas, que talvez precisem se desprender da rigidez técnica que deflagra suas resistências. A saúde pública poderia vir assim a constituir um importante novo campo de atuação da psicanálise, campo este que estaria justamente indo de encontro às transformações sócio-históricas do nosso tempo.


A psicanálise não só é convidada para sua manifestação na área da saúde, mas também é muito bem-vinda em todos os campos da sociedade moderna, como no direito.


Freud participou de um seminário de juristas, falando sobre  “A psicanálise e a determinação dos fatos nos processos jurídicos” em outra ocasião, pediram-lhe que examinasse o parecer de um perito, num caso de parricídio. A posição de Freud é a mesma, nos dois momentos: “A psicanálise não tem como oferecer aos processos jurídicos elementos para o Direito se servir em suas decisões sobre a culpa e o castigo, ou seja, o veredicto do tribunal não deve se apoiar nas investigações da psicanálise” (p 105).


Lacan em “Outros escritos” confirma a posição freudiana, afirmando que cabe somente ao Estado estabelecer a punição ao ato criminoso, (...) “A psicanálise do criminoso tem limites que são exatamente aqueles em que começa a ação policial, em cujo campo ela deve se recusar a entrar. (p129)”. De Freud a Lacan, estamos avisados onde encontrar a disjunção entre a prática analítica e a jurídica, localizando com precisão onde a psicanálise não deve estar. Contudo, essa recomendação não demarca uma disjunção absoluta entre os campos, pois verificamos em Freud e Lacan e na clínica contemporânea as indicações para o laço entre a psicanálise e o direito.


Podemos encontrar o ponto onde a psicanálise e o direito se conectam:   a responsabilidade do sujeito na sua relação ao seu gozo. O Direito, conforme Lacan nos diz no Seminário XX, o direito fala do gozo, sua essência está em repartir, distribuir, retribuir o que diz respeito ao gozo. Neste ponto a psicanálise com seus dispositivos, pode causar efeitos no campo jurídico, fora do seu habitat natural.








Bibliografia


FREUD, S. A psicanálise e a determinação dos fatos em processos jurídicos. In:  Edição Standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v. IX. p.105 a 115.


LACAN, J. Premissas a todo desenvolvimento possível á criminologia. In: Outros escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003. p.129-130.


FREUD, S. Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença. In: Op. cit., v. XIV, p.2


FREUD, S. O mal-estar na civilização (1930). Rio de Janeiro, Imago, 1980. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas, v. 21). 99.


KAUFMANN, Pierre. Dicionário enciclopédico de psicanálise. O legado de Freud a Lacan. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.


LACAN, J. Seminário XX. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.1982. pp.10,11


LACAN, J., 1998. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.(1958) - A direção do tratamento e os princípios de seu poder. In: Op.cit.


FREUD, S. (1980). Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise. Em Freud, S. Obras Completas. v. 12. Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1912).


FREUD, S. (1980) Sobre o Início do Tratamento. (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise I). Em Obras Completas. v. 12. Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1913).


LACAN, J. (1988) O Seminário. Livro XI. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: J. Zahar.































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